sábado, 6 de novembro de 2010

TURMINHA IRADA - PORTAIS DE ESPELHO




TURMINHA
 IRADA










PORTAIS DE ESPELHO

  A fazenda estava alagada. Cinco dias seguidos de chuvas fortes, deixaram a gente de “molho” dentro do casarão.

Nesse caso, nossa diversão se limitava aos jogos de tabuleiro que minha mãe, dona Sílvia havia trago da cidade, comer as gostosuras feitas pela vovó Judite e ouvir os causo de assombração do vovô Ismael. Esse último era o nosso passatempo preferido.
   Eu sou o Pedro. Filho de dona Sílvia e neto da vovó Judite e do vovô Ismael.  Do alto de meus doze anos, ficava inquieto, pois queria explorar os perigos da fazenda e tudo o que tinha feito até então, era jogar jogos de tabuleiro, comer, ouvir causo e comer outra vez. Do jeito que as coisas andavam, na semana seguinte eu não iria conseguir nem ir a pé para a escola e o que dirá manter a artilharia no intercolegial... O jeito foi apelar para o espírito aventureiro do vovô:
   - Ah vovô! Que tal a gente ir lá fora para ver se acha um curupira segurando as árvores velhas pra não desabar na tempestade, hein?
   - Se aquiete Pedrim, que sua mãe me tira os remédio se eu levo ocê pra fora dibaxo dessa tormenta...
   - Mas vô! Ta muito chato, ficar trancado aqui. Amanhã a gente volta pra cidade e na segunda tem aula... Esperei o semestre todo pra passar a última semana de férias assim?
   Vovô Ismael pensou, pensou. Lentamente se levantou da cadeira de balanço. Apressei-me para ajudá-lo, mas ele sinalizou que não era preciso. Apoiou-se na bengala e colocou uma das mãos nas costas, se esticando lentamente.
   Meu amigo João olhava os gestos do vovô com uma tremenda impaciência. Parecia ter vontade de ir logo, aos empurrões, fazer o pobre vovô se apressar. Minha mãe  pediu para que eu não o chama-se para a viagem de férias, mas quando fui falar com Carlos e a Júlia, ele se convidou prontamente. Tentei fazê-lo mudar de ideia, inventando um monte de desculpas, como a de que o carro era pequeno para levar todo mundo, mas ele tinha respostas para tudo e até convenceu o pai dele a levá-lo com parte de nossa bagagem. Assim, cinco minutos depois que chegamos, eles estavam buzinando atrás.
   Enfim, o vovô se aprumou e saiu a passos lentos. Por um curto tempo ele tomou a direção da porta de saída, me deixando todo esperançoso, mas aí ele parou e bateu com a bengala no chão por três vezes.
   Vovó, que entrava na sala trazendo mais uma fornada de biscoitos, levou tamanho susto que deixou a travessa cair, colocando as mãos sobre o rosto.
  Vovô Ismael, alheio ao pânico da vovó, levantou o tapete com a bengala, deixando a mostra um alçapão, cuja existência eu desconhecia.
   Percebi que ele não conseguiria se curvar para abrir, então eu e Carlos fomos ajudar.
   Ao abrir nos deparamos com uma escada de madeira de lei iluminada apenas a alguns centímetros, pela luz da sala de estar:
   - Onde acendo a luz, vô?
                  
   - Num tem Luiz não meu fi...
                     
   Se vocês repararam no jeito estranho do vovô falar, é porque ele cresceu (e aprendeu) em outro tempo e nunca foi à escola. De acordo com suas histórias, ele era muito pobre... Eu não fazia ideia de como ele conseguiu comprar a linda fazenda com todas aquelas terras a perder de vista. Sinceramente? Seria melhor continuar não sabendo.
   Para resolver o problema da luz, vovô foi até a grande estante e pegou um candeeiro de mão, muito antigo, de ponta longa.
   Não o vi colocar combustível, nem usar fósforo, mas com um leve estalar, a lamparina se acendeu e em seguida, ele se dirigiu às escadas e eu, Carlos, Júlia e João, seguimos ele.

   A fraca luz do candeeiro, não era suficiente para nos mostrar o que havia naquele porão, mas vovô, como se não precisasse da visão, deixou o pequeno candeeiro comigo e entrou pela escuridão.
   Mais um estalo. Em seguida o porão todo ficou iluminado por candeeiros presos à parede.
   As paredes estavam cobertas de espelhos dos quais saltavam figuras assustadoras que os emolduravam em cor dourada.
   Lobisomens, mula-sem-cabeça, centauro... Toda a sorte de assombrações e monstros estava emoldurando as centenas de espelhos. O porão se estendia por um espaço bem maior que a área ocupada pelo casarão. Lá também havia centenas, milhares de coisas ainda mais estranhas que os espelhos e então, vovô, revirando as horrendas tralhas, começou a contar:
   - Bão mininos! Acho que ocêis já tão grandinho pra sabê... Acho inté que já pode ficá nu meu lugá cumo gardadô dos portá...
   - Ah, Pedro! Fala sério! Esquece essa historia de “guardado do prtá” e vamos dar o fora deste lugar sinistro...
   - Quieto João. Quero saber do que o vovô Ismael está falando...    
   - Nhem, nhem, nhem... Só o que velho sabe falar são baboseiras e caduquices...  
  
   - Shhh! Acontece que eu gosto de ouvir caduquices, ta?
   Vovô Ismael não ouviu nossos cochichos, ainda bem, não desejaria nunca deixá-lomagoado. Ele continuava sua história:
   - ...Cuntece qui nessas terra, tão prantado tudo qui é portá pro ôtro mundo. In antes, era o curoné dono daqui qui cuidava di tudo, mais ele morreu, sem dexá fi, intonce eu i Judite tivemo de herdá tudo, i nóis tem qui cuidá prasôtro mundo num vim pru di cá... Às veiz, uma ô ôtra ssombração, ruma um jeito di iscapá  pur ôtros lado, mais aí nóis usa os portá pra incontrá as sombração qui tive mais perto i si ela tive nu mundo mortar, intonce nóis pega ela.

   - Não disse, não disse? Esses velhos só dizem caduquiceeeeeeeeees...
   Antes de João terminar a frase zombeteira, uma mão acinzentada e com unhas enormes o agarrara e o puxaram para dentro do espelho. Carlos, Júlia e eu, começamos a gritar, e gritar com toda a força que tínhamos. Mas o vovô, sempre calmo:
   - Carma, carma minha gente.    
       
  Ele se enfiou para dentro do espelho.
   Ficamos agarrados um no outro e olhando fixamente para o tal espelho percebemos que o ele era todo emoldurado com figuras tenebrosas de bruxas velhas e assustadoras.
   Cinco minutos depois, uma fumaça espessa saiu do espelho, nos cegos e tossindo feito o motor do fusca do meu tio. Em seguida, o vovô saiu amparando João.
   Só havia se passado cinco minutos, mas o zombeteiro do João já não era o mesmo. Sua pele, grudada na pele, trazia as rugas de décadas de vida, que ele não tinha. Seus olhos acinzentados refletiam os anos que nunca foram vividos.
   Outra vez nos pusemos a berrar sem parar e sem poupar forças e mais uma vez vovô tentou nos acalmar:
   - Carma, carma... Isso foi só uma brincadeirinha de bruxa veia. Minha ele tará nuvim im foia.
   Naquela tarde, João teve de emprestar de Vovô, uma das bengalas, pois mal conseguia se erguer de uma poltrona e para andar, só arrastando um chinelo pela casa. Por sorte, dona Sílvia havia saído com uma “velha” amiga de infância e não viu as condições do “jovem” João.
   Na manhã seguinte a “velha” aparência de bobo estava de volta, mas João nunca mais  zombou outra vez da velhice alheia.
   Naquela mesma manhã de domingo, nos preparávamos para voltar à cidade, quando vovô segurou minhas mãos, prestes a guardar um casaco na mala, me deu um papel muito antigo enrolado e amarrado com uma fita preta:

  - Cume qui eu falei onti, ocê já ta na idade di ficá nu meu lugá, mais pur inquanto, leva esse mapa ispeio, mais só abre ele, quano ocê achá qui é necessário di verdade...
(...)



MARIA HELENA CRUZ


MARIA HELENA CRUZ

Nenhum comentário:

Postar um comentário

GOSTOU? ENTÃO ME CONTA...