De repente, passando pela cozinha, a chama azulada do fogão a gás me arremeteu a outro lugar, outro tempo.
Pude ouvir o “tac-tac-tac” do chinelo de dedos de minha mãe, que com as pernas cruzadas, uma por cima da outra, batia o chinelo na sola do pé direito, em ritmo frenético. Eu sempre tentava imitar, mas qual nada. A velocidade com que ela fazia aquilo era inalcançável para mim.
Talvez pelo tamanho do chinelo que calçava os enormes pés de cinco anos, ou mesmo a falta de jeito, “descoordenação motora”.
Outros acabavam sendo contagiados pelo “tac-tac-tac” de minha, enquanto aquela “roda de contação de estórias de gente grande” aumentava aos poucos com a chegada de outros tios, primos, vizinhos...
Lembro-me bem do cenário.
A cozinha de minha avó.
A construção rústica, de teto baixo, bem baixinho mesmo, onde, em alguns lugares, certos adultos se abaixavam para não encostar a cabeça. Em um canto, a estrela da noite. Um fogão a lenha aceso, com suas enormes labaredas e aconchegante calor.
Entre uma reclamação de vizinhos, uma fofoca sobre a filha assanhada de certo compadre. Alguém começava a falar:
- “Ocês já foro lá pras banda da fazenda do coroné Bento dispois que ele bateu cum as deiz”?
- “Num fumo não, ma pru quê”?
- “Cuntece que o diacho do home, num qué sabê di dexá sas terra, mar de jeito ninhum”!
- “Ma cumé que é isso cumpade”?
- Pois “vô cuntá pro cês”...
Disseram que na noite que o coronel Bento morreu, parecia que o céu ia desabar em água, de tanto que chovia. Relâmpagos rasgavam o céu, clareando a noite, fazendo ficar feito dia.
Na casa grande, o coronel estava trancado no “quartinho do baú” e com três grandes lamparinas a querosene acesas, abria um saco velho, esfarrapado encardido, esparramando sobre a mesa, tudo o que tinha dentro.
Moedas, dinheiro, alguns cordões dourados e... Uma mecha de cabelos.
Coronel Bento gargalhava por seu recente feito e sua nova aquisição. Mas de repente, um relâmpago muito mais forte que os de antes, iluminou o quartinho com uma luz capaz de cegar olhos sãos.
O coronel cobriu os olhos com o braço e esperou um tempo, com os olhos bem cerrados. Quando os abriu, uma moça de cabelo dourados e longos, esparramados pelos ombros. Toda vestida de renda branca estava parada na sua frente.
Sua pele, muito clara e seus olhos tristes, lhe davam um ar angelical.
O coronel nunca permitia que ninguém entrasse no quartinho do baú, temendo por suas riquezas. Tanto que o lugar estava todo empoeirado e repleto de teias de aranha. Mas nem naquele cenário arrepiante, o coronel Bento conseguia pensar em outra coisa, que não fosse sua riqueza e se pôs a esbravejar com a moça:
- “O quê cê tá fazeno aqui?...
- “Devorve o tisoro de meu pai.
- “Qui Mané tisoro do seu pai,o quê! Tudo que é tisoro aqui é meu e só meu, tá sabeno?”
- “Devorve o tisoro de meu pai”...
Sem a menor paciência, o coronel foi até a porta para mandar que a moça se retirasse e percebeu que estava trancada.
Verificou seu bolso e a única chave do quartinho do baú estava lá. O coronel ficou muito intrigado:
-“Cumé qui ocê intrô aqui? Já sei... Subiu pela janela. Cumo que eu num pensei im miorá a sigurança na janela?
O coronel foi ver a janela, mas o quartinho estava no terceiro andar da casa grande. A parede era lisa, não se podia escalar. Não havia nenhuma árvore ou coisa alguma que ajudasse ao acesso para a janela. E o coronel ficou ainda mais intrigado:
- “Cume qui ocê intrô aqui, diacho?”
A moça pálida e vestida de branco, atravessou a mesa e se aproximou ainda mais do coronel:
- “Devorve o tisoro de meu pai.”
Foi aí que o coronel percebeu que se tratava de uma assombração.
Sem raciocinar, pegou a garrucha que carregava nas costas, cerrou os olhos, e disparou chumbo em cima da moça...
Ele tinha certeza de que não havia errado um só disparo, mas quando abriu os olhos, a moça ainda se aproximava lentamente:
- “Devorve o tisoro de meu pai”.
Em desespero, mas sem conseguir se desfazer de sua cobiça, ele contornou a assombração e correu para tentar reunir toda a riqueza exposta na mesa entre seus braços.
A assombração também se virou para a mesa onde foi parar o coronel:
- “Devorve o tisoro de meu pai”
Na tentativa desesperada de proteger sua fortuna, o coronel acabou derrubando as lamparinas e derramando a querosene por todo o quartinho.
O fogo tomou conta dos papéis, da mesa, do dinheiro e até do baú de madeira, mas o coronel não conseguia deixar de tentar salvar sua riqueza e quando o fogo começou a tomar seu corpo, ele nem conseguiu gritar, pois a assombração estava tão perto que ele podia sentir seu hálito gelado em meio às labaredas.
A moça levou suas mãos, as mãos do coronel e lhe tirou a mecha de cabelos e desapareceu, enquanto o fogo se alastrava por toda a casa consumindo tudo...
-...Pois é! Veja só, “ocês qui” nem o dilúvio “qui” caía deu conta “di apagá” o fogo, “qui quemô” por três “dia” e três “noite”. “Dispois disso” todo mundo “qui” chega perto daquelas “terra”, diz “qui” vê o “coroné tentano juntá” suas “riqueza”.
CAUSOS DE ASSOMBRAÇÃO A BEIRA DO FOGÃO A LENHA
CAP.II
Sob a chama voraz do fogão a lenha, mal acabava um causo, alguém já emendava outra história. Desta vez foi meu pai quem seguiu contando
- “Rapaiz! Ôtra noite foi o Zé da Artiva que me feiz fugi di Carrera, pasto a fora... Ceis sabe da história Du lubisome, num sabe”?
- “Mais o menos, cumpade. Mais conte aí, sô!”
- “Intonce vô cuntá...”
Meu pai começou a falar sobre a lenda do “lobisomem caipira”, que é bem diferente do que se costumam saber sobre essas criaturas, os lobisomens.
Lá na roça, o que se conta, não tem nada há ver com homens que viram lobo, ou lobos que viram homens. Lá, o lobisomem é um grande, enorme... PORCO.
Pois é! O lobisomem de lá, na verdade, deveria se chamar “porquisomem”, não é mesmo?
Dizem que a maldição ganha vida, quando alguém passa a noite no galinheiro e, até sem querer, come “titica” de galinha, mesmo que seja só um pouquinho que ficou grudado no lábio e a língua acabou arrebatando para dentro do estômago. È claro que este feito tem que acontecer na última noite de lua cheia, não é?
Assim, na próxima lua cheia... Eis que surge a criatura...:
- “Uai, cumpade! Disso eu sei. Mais e a tar história do Zé da Artiva.”
- “Pois num ti conto, homi”...
Corria por lá, o boato de que, durante uma briga de casal o “Zé” foi posto para fora de casa, por sua mulher Altiva, a “Artiva” como dizia o pessoal de lá. Por falta de outro lugar para se abrigar do sereno e da friagem, o Zé foi parar no galinheiro.
Juntou todo o capim seco que encontrou e improvisou uma cama.
O poleiro, onde dormiam as galinhas, ficava bem em cima da tal cama e, como não podia ser diferente, o coitado se tornou alvo certo de toda a “titica” produzida aquela noite e infelizmente, uma galinha de mira perfeita, acertou bem nos lábios do Zé. Em um movimento reflexo, ele passou o braço para “limpar”, mas acabou empurrando parte da tal titica para dentro da boca e, sem ver, engoliu.
No dia seguinte, Altiva foi até o galinheiro, se desculpou com o marido e o levou de volta para a casa, onde ele tomou um belo e demorado banho de bacia para se livrar de toda aquela sujeira.
Tudo parecia normal, até chegar às próximas noites de lua cheia.
Fazendeiros da região fizeram um grande alvoroço, pois o gado de todos, estava sendo atacado por uma criatura desconhecida e sedenta de carne e sangue:
- “Ara! Só pode ter sido uma onça, sô!”
- “Má num é não, Mané... Isso é coisa de ôtro mundo”...
Todas as noites de lua cheia, o alvoroço se repetia.
Certo dia, o pai de Altiva, ficou adoentado, sabe-se lá de quê e a filha, preocupada, tratou de intimar o marido à levá-la à casa do pai:
-“ Mais Artiva”! Hoje é noite de lua cheia...
- “Dexe de bobera, homi! Eu lá vô tê medo de onça... Vamo logo qui eu quero chegá lá ainda essa noite”...
- “Mais hoje é noite de lua cheia Artiva”!
De nada adiantou as reclamações do Zé. Altiva estava decidida a ver o pai ainda àquela noite. Arrumou sua filhinha, uma grande bolsa que, é claro, seria carregada pelo Zé e se colocaram a caminho.
Antes que alcançassem a metade do caminho, o céu começou a escurecer com o dia cedendo lugar à noite.
Zé, ofegante falou para a mulher
- Óia Artiva. Eu perciso í ali nu mato, mais ocê num fica aqui não, pru que pur aqui tem muita cobra. Suba cum a minina nessa pedra arta. Daqui um poço eu vorto i nóis segui viage...
O Zé sumiu no meio do mato, enquanto a mulher esperava em cima da pedra...
Logo, redonda feito um queijo, a lua cheia surgiu no céu estrelado.
Altiva já estava inquieta com a demora de Zé, quando começou a urros e rosnados de um animal muito feroz.
Tremendo de medo, apertou a filha em seus braços e de repente viu a enorme criatura:
- “Jisus, Maria, Jusé... Zé... Zé, acuda nóis, Zé”!
O enorme porco, de presas afiadas, anca muito alta e gigantescas patas quadradas tentou ferozmente subir na pedra, mas quando quase alcançava a mulher e a criança, escorregava, mas não desistia e tentava outra vez.
As investidas da criatura duraram até a madrugada e segundos antes do raiar do sol, o bicho alcançou a barra da saia de Altiva, arrancando um pedaço, depois desistiu da presa e sumiu no mato.
Poucos minutos depois o Zé a pereceu:
- “Homi di” Deus! “Pru que qui ocê demorô” tanto”?
- Ara! É que eu tava “cum” uma bruta dor de barriga, sô!
Exausta, a mulher na quis muita conversa e seguiram viagem.
Chegando lá, o pai de Altiva já estava recuperado e o que seria uma visita a um adoentado, acabou se tornando um almoço comemorativo. Entre um assunto e outro, começaram a contar piada e quando o Zé deu a primeira gargalhada...:
- Eu sei “cumpade”, eu sei. A “Artiva” viu u fio do pedaço de saia arrancado, preso nus dente “Du” Zé e se “separo” dele ali mesmo, sem nem “vortá” pra “pegá” suas “ropa”...
- Pior “cumpade”, é que noite passada, “cum” a lua cheia nu céu, “vortano” pra casa, eu de cara “cum’ u porcão “i quano” eu tava “chegano im” casa, eu “ôvi” a “voiz” Du Zé “falano”... “Num percisa corrê” não “Gerardo”. É “ieu, sô”...
MARIA HELENA CRUZ